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sobre livros e coisas da vida

sobre livros e coisas da vida

Luísa

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Fonte: Unsplash

 

          Abro os olhos para o dia do seu funeral. Nunca acreditei que este dia chegaria. Tinha a certeza que deixaria este mundo antes dele.

          Os primeiros raios de sol do dia atravessam a janela. Quando a Margarida me deixou em casa, ontem à noite, não tive forças para mais nada a não ser deitar-me. O estore ficou na mesma posição em que o tinha deixado de manhã. Quando cheguei, pensava apenas no quão bizarro seria deitar-me sozinha, pela primeira vez, na cama que partilhámos durante tantos anos. Deitei-me, adormeci e dormi que nem um anjo.

          O relógio pousado na mesa de cabeceira diz-me que ainda é cedo. Faltam algumas horas para estar na igreja, mas num movimento lento, levanto-me. Nunca fui pessoa de fazer ronha.

          Já no corredor, dou por mim a contemplar a linha do tempo formada pelas fotografias penduradas na parede. Detenho-me em frente da minha fotografia favorita. O braço do João envolvia-me sem dificuldade enquanto eu inclinava ligeiramente a cabeça para trás, para lhe poder olhar nos olhos e sorrir. Ele também sorria. Se não fosse esta fotografia acho que me teria esquecido da forma dos seus lábios quando se curvavam ao olhar para mim. A prova de que o passado nem sempre foi triste.

          Os latidos da Nina fazem-me regressar à realidade. Já não preciso de a deixar lá fora, penso. O João sempre disse que os animais deviam ficar na rua, mas ele já não está aqui. Quando chego à cozinha, abro a porta das traseiras. A Nina está feliz por me ver. 

          – Entra, Nina – disse, docemente.

          Ela sabe o que lhe estou a dizer porque o seu primeiro instinto é desconfiar. Senta-se e observa-me com atenção. Nunca ninguém lhe disse para entrar em casa. Talvez ainda não se tenha apercebido de que as coisas mudaram por aqui.

          Espero mais alguns segundos, mas não me parece que vá entrar. Deixo a porta aberta, caso mude de ideias.

          – Sabes, Nina – digo, enquanto preparo o pequeno-almoço – as coisas por aqui vão ser diferentes agora. Somos só nós as duas.

          Ela ouve-me com atenção.

          – Eu deixo que te sentes no cadeirão do João. É todo teu agora, que tal? – sorrio e arrependo-me no mesmo segundo.

          E se alguém me tivesse visto a sorrir no dia do funeral do meu marido? Preciso de ter cuidado.

 

 

          – Mãe?

          Como sempre, a voz da Margarida enche a casa de vida. Deve ter entrado pela porta da cozinha, que ficou aberta.

          – Estou no teu quarto – respondo.

          A madeira vai estalando à medida que ela se aproxima. Estremeço por saber exatamente quantos passos faltam até conseguir vê-la em frente à porta. Faltam-lhe exatamente quatro, três, dois,...

          – Chegaste cedo, Guida.

          Não deixo de reparar nos seus olhos, que se destacam da cor negra do vestido que escolheu. Os olhos que foram tantas vezes a minha salvação nos dias em que o João chegava a casa tarde, a cheirar a tabaco e whisky barato.

          Passava horas na cadeira de baloiço com a pequena Guida nos braços. Sentia-me segura ao perder-me na imensidão azul do seu olhar. É onde estou sentada agora, perdida em recordações.

          – O que é o jantar, Luísa? – gritou João ao entrar em casa. A porta bateu com toda a força quando ele a fechou.

          Pousei a Guida no berço, com todo o cuidado para não a acordar. Fiz o caminho até à cozinha com a sensação de que algo não estava bem. Outra vez.

          – Isto é que são horas, senhor João? – tentei brincar.

          – Não me chateies. O que é o jantar?

          Mais uma vez, o João estava carregado de álcool a correr-lhe no sangue, mas nesse dia eu também não estava com paciência para levar com a má disposição dele.

          – Olha, se é para vires para casa todo mal-humorado, podes dar meia volt…

          Não cheguei a terminar a frase. Fui interrompida pela mão de João e uma explosão de dor espalhou-se no meu rosto.

          O meu primeiro instinto, depois do que aconteceu, foi levar a minha própria mão à cara para verificar os estragos. No momento a seguir, corri para o quarto da Margarida, tranquei a porta e arranquei a nossa filha do berço. Tive uma vontade enorme de agarrá-la nos meus braços e protegê-la de um mal que ainda nem sabia bem qual era. Apertei-a com tanta força que ela começou a chorar e, depois, comecei eu.

          As lágrimas dificultavam a minha visão, mas consegui distinguir a sombra dele. Estava parado do outro lado da porta.

          – Luísa… Desculpa. – proferiu em tom de arrependimento as palavras que passariam a fazer parte deste nosso ritual doentio.

          Segurei as lágrimas. Durante os minutos que se seguiram, só conseguia ouvir o choro intenso da Guida e o meu coração a bater fortemente. Não respondi.

          Ela só se acalmou quando o João se afastou. Quando ouvi a porta do nosso quarto fechar-se, o meu corpo conseguiu relaxar um pouco e as lágrimas voltaram a cair, silenciosamente, no meu rosto.

          Ainda hoje me questiono quando é que tudo começou a desmoronar-se. Apenas me recordo, nos anos seguintes, de me trancar no quarto da nossa filha para fugir dele.

          – Não consegui dormir muito – diz Margarida.

          – Nem eu – minto. – Como é que te sentes, filha?

          – Estou bem. Não é nada de que já não estivesse à espera.

          – Temos de pensar que ele está num lugar melhor agora, que foi forte até ao fim.

          – Não, mãe. Tu é que foste forte até ao fim. – dispara.

          – Não digas isso, Guida.

          Desde muito cedo que a Margarida se apercebeu do que se passava dentro desta casa e isso fez com que crescesse revoltada com o pai e com a forma como ele me tratava. Implorou, vezes sem conta, que me mudasse para casa dela, quando foi viver com o marido. Mas eu não queria interferir na vida da minha filha e não podia deixar o João no estado em que se encontrava.

          Nunca lhe confessei que me arrependia de lhe dizer não de todas as vezes que as palavras do João me atingiam logo em seguida. Porque, apesar do seu corpo já não se mover como antigamente devido ao AVC que sofreu, aprendi de forma dura que palavras podem humilhar tanto ou mais do que murros e pontapés.

          – Como foste capaz de aguentar este inferno? Como foste capaz de cuidar do diabo?

          – Eu não… Não sei. – a minha voz quebra.

          – Desculpa, mãe. – Aproxima-se para me confortar. – Eu sei que fizeste o que podias e o que achavas que era certo.

          Se não o fizesse, o que os outros iriam pensar?, penso.

          Margarida olha para mim com ternura. – Estás pronta?

          Confirmo, acenando com a cabeça, e ela ajuda-me a levantar da cadeira de baloiço.

 

 

          A cerimónia na igreja foi simples, mas bonita. Mais do que o João merecia.

          Percorremos agora o caminho até ao cemitério. Sigo de braço dado com a Margarida e a aldeia inteira segue atrás de nós. Pergunto-me se alguma destas pessoas está tão feliz quanto eu por este ser o último adeus. Pergunto-me se desconfiam do que fiz. Ou do que não fiz.

          Tudo depende da perspectiva.

          No dia em que o João sofreu o primeiro AVC acreditei que Deus tinha ouvido todas as minhas preces, mas depressa entendi que o pesadelo não tinha terminado. Não fui capaz de cometer o mesmo erro quando vi o João em agonia novamente.

          – Luí… Luísa… – ouvi-o chamar em esforço.

          Quando cheguei à sala, o João estava agarrado ao peito, ligeiramente curvado para a frente no cadeirão.

          Apercebeu-se da minha presença. – Nã… Não consigo… Respirar… Aj… – Não teve forças para terminar a frase. Pedia-me ajuda, uma vez mais.

          Como disse, não cometi o mesmo erro duas vezes.

          Vi confusão e desespero no seu olhar. Vi o medo nos seus olhos mesmo antes de lhe virar as costas.

          Fui até ao jardim. A Nina brincava à minha volta, enquanto eu cuidava das roseiras. O sol já se tentava esconder atrás da serra, mas ainda consegui sentir o seu calor no meu rosto naquele fim de tarde tão bonito.

          Atravessamos o cemitério em silêncio. Por instantes, ergo a cabeça e vejo o buraco aberto no chão. A última morada do meu marido.

          O meu coração pulsa com tanta força que temo não sobreviver para conhecer a minha vida sem o João. Mais do que isso, receio que as pessoas percebam o que estou realmente a sentir, agora que se aproximam, formando uma meia lua do meu lado esquerdo.

          A minha respiração acelera, assim como o tempo deve ter acelerado, pois não dei por ele passar. O meu olhar preso no caixão.

          É agora. Começou a descer. Não tenho mais vontade de conter a felicidade e deixo-a verter na forma de lágrimas.

          Enquanto todos acreditam que vêem tristeza, ninguém desconfia que é liberdade que vejo à minha frente.

          – Adeus, meu amor. – sussurro.

          Arde no inferno, penso.

 

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